nDm 03 | 29.jul.2021
A terceira edição da newDATAmagazine foi publicada a 29 de julho de 2021 > LER A REVISTA.
MENSAGEM DO DIRETOR
A Naturalidade da Inteligência
Em 1996, o Deep Blue(1) ganhou a Kasparov(2) uma partida de xadrez, mostrando que, numa tarefa bem estruturada, um programa poderia bater o melhor dos humanos. No ano seguinte, venceu duas. Em 2013, o Watson(3) mostrou que podia derrotar humanos no Jeopardy(4), percebendo melhor e mais depressa qual o contexto de uma resposta e encontrando a pergunta certa – uma tarefa muito menos estruturada.
Momentos como estes criaram uma expetativa que traduzimos em muitos cenários, alguns apocalípticos, outros celestiais, criando um estado de excitação que levou a novos sonhos, novas tentativas, gerando uma espiral criativa ascendente.
Mas o conhecimento é não-linear. Não só o Deep Blue continuou a empatar e a perder com Kasparov, como foi aposentado e não voltou a jogar xadrez. E o Watson, embora ganhasse o Jeopardy e esteja a contribuir para a investigação sobre o cancro, teve um momento em que disse que Toronto era uma cidade dos EUA. Outras aplicações, como os veículos autónomos e ChatBots têm sido também sucessivamente alvo de críticas de enviesamentos culturais e comportamentos humanos, demasiado humanos.
A inteligência humana é já de si elusiva. Associada muitos anos ao QI (Quociente de Inteligência), (William Stern, 1912), depois ao QE (Quociente Emocional), (Wayne Payne, 1985), tem conhecido sucessivas definições, para explicar porque é que, por exemplo, alguns atletas, com pouquíssimo treino intelectual, antecipam fenómenos de elevada complexidade física e respondem com elevada precisão, usando informação muito escassa e recebida a uma velocidade muito elevada. Num longo historial de investigação prévio e subsequente, em 1983, Howard Gardner procurava explicar estas discrepâncias desfazendo o conceito tradicional de inteligência, reforçando a sua natureza multifacetada.
A Inteligência Artificial (IA) parece, pelo contrário, bem estabelecida e popularizada, tendo conseguido progressos espantosos, dando um simulacro de vida a objectos inanimados, como fábricas, carros, prédios; criando personagens, diálogos e interações que desafiariam a imaginação de Turing(5). Esse lado luminoso popularizou-a. Mas um lado mais sombrio também. A capacidade de reconhecimento facial e profiling massivos, a ideia de que cada passo nosso e cada dado que nos caracterize é analisado, avaliado e pontuado, juntaram à admiração inicial uma preocupação orwelliana crescente e renovada.
A IA é, de facto, um instrumento poderoso, como muitas tecnologias, mas é também tão frágil quanto é quem a cria e gere. Se é artificial, tem também uma origem muito humana, onde se inspira, com todos os problemas que daí advêm, seja na sua arquitetura, nos seus processos ou nos dados que a alimentam. E é por causa desse lado humano que, quando olhamos para os resultados que alcançámos com a disseminação e democratização do seu uso, constatamos que não é uma nem “a” inteligência que se está a espalhar a uma velocidade e diversidade admiráveis, mas muitas inteligências, ampliando o que somos e tudo o que nos faz humanos.
André Carreiro
(1) Supercomputador e software criados pela IBM para jogar xadrez autonomamente.
(2) Considerado por muitos o melhor jogador de xadrez de todos os tempos.
(3) Sistema de processamento de linguagem natural e representação de conhecimento.
(4) Programa de televisão onde se apresentam respostas de cultura geral, para as quais os concorrentes devem formular a pergunta correspondente.
(5) Alan Turing foi o criador de um teste cujo objetivo último seria avaliar se um software se poderia tornar indiferenciável de um humano num diálogo.