Page 8 - newDATAmagazine | 06>10>2021
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Berliet-Tramagal
ou Mercedes?
O segredo das economias prósperas... Berliet-Tramagal, todo produzido ali, com
Nunca gostei muito de História, mas, de vez exceção do motor, que era importado de
em quando, tal como toda a gente, dou de França. Produziram-se mais de 3.500 camiões
frente com situações que me fazem perguntar: em 10 anos, incorporando todas as mais
onde é que eu já vi isto? recentes tecnologias da indústria automóvel,
Nasci e vivi toda a minha infância numa para um produto destinado aos mais violentos
pequena localidade ribatejana chamada testes práticos da guerra. Lembro-me, em
Tramagal. Todos os dias chegavam pessoas pequeno, de ver as demonstrações públicas
de fora, que ali queriam morar. Vivia-se um das suas capacidades de locomoção e tração
clima económico, social e até cultural muito em terrenos bem acidentados, com subidas
próspero, numa época em que, dizem, o país íngremes e lamacentas. O combustível, diziam
estava mergulhado numa enorme crise. os seus condutores, podia ser qualquer coisa
Imunes ao regime ditatorial, à guerra colonial e líquida que ardesse, desde álcool, benzina ou
à pobreza geral, no Tramagal todos tinham petróleo. Para além do mais, depois de quase
emprego, todos estudavam, havia comércio, destruída por uma bomba, a Berliet-Tramagal
cafés, cinema e teatro e, várias vezes por ano, podia ser reconstruída e voltar a andar, no meio
diversas festas e comemorações, sendo talvez do mato africano, com a maior das facilidades.
o 1.º de Maio a de maior destaque. O segredo E s t áva m o s p e r a n t e u m a m a r av i l h a
desta ilha de prosperidade económica tinha tecnológica quase totalmente concebida pelos
um nome: Metalúrgica Duarte Ferreira (MDF), engenheiros e técnicos portugueses.
uma empresa que iniciou atividade em 1880, a Com o fim da guerra colonial, a empresa
produzir alfaias agrícolas, cujos produtos mais entrou numa profunda crise. Por um lado, a
emblemáticos são a charrua e a ceifeira rotura de mercado para o seu produto estrela
debulhadora (amarela com o símbolo da militar. Por outro, as complexas tensões
borboleta). laborais, incendiadas por uma nova classe
Muita outra maquinaria foi feita no sindical reivindicativa, muito popular após a
Tramagal, durante décadas, desde os lagares revolução de abril.
de azeite até às agulhas do caminho de ferro. Ainda assim, os mais resilientes lançaram
Apenas a matéria prima vinha do exterior. Tudo mãos à obra e criaram um novo modelo de
era idealizado, projetado e produzido no camião. A ideia era conquistar os decisores
Tramagal. O grande valor gerado por uma militares para a aquisição, com eventuais
indústria inovadora e florescente estava na adaptações e melhorias, daí em diante, da
base do elevado nível de vida daquela pequena nova viatura para o exército português.
localidade com cerca de 3.500 habitantes. Não sei bem o que se passou, mas
De projeto em projeto, de produto em disseram-me, na altura, que o governo decidiu
produto, a MDF foi crescendo, até empregar comprar tudo à DAF (Holandesa) e, mais tarde,
mais de 2.000 pessoas, em 1974. Nesse ano, o porque o negócio correu mal, passou tudo para
produto de excelência era o camião militar a Mercedes.
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